quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Lotérica

Lixar as unhas parecia o passatempo predileto dela. Quase um hobbie, treinando um pouco mais seria quase uma atleta profissional. Não que fosse preguiçosa, não, a falta de trabalho é que era muita no meio daquelas dezenas de repartições públicas. Tirando o horário de almoço, quando a lotérica se enchia de esperançosos apostadores, Carminha passava boa parte de seu dia esperando pelo fim dele. Mas a espera até que lhe fazia bem. Ou parecia fazer. A pele meio morena - de preto lavado, minha avó dizia - e o cabelo liso e escuro, um bocado mal-tratados, não negavam a baixa classe social da moça, mas eram definitivamente apaixonantes.

Bonitinha que só ela, tinha um sorrisinho encantador, quase hipnotizante na sua mais absoluta e indiferente formalidade. Ninguém resistia àquele sorriso protocolar. E as covinhas que lhe surgiam nas bochechas, então? Não havia um só funcionário do, hoje já finado, Banco de Previdência Suplementar do Estado do Rio de Janeiro que não lhe mirasse as famigeradas covinhas quando a ridente Carminha lhes recebia o possível (mas improvável) bilhete premiado. As unhas (vermelho-sangue, e muito bem lixadas, fique claro) batiam céleres e compridas nas teclas do velho Compaq que registrava os jogos. "Boa sorte", tintilava a doce e distante Carminha, estampando na cara um sorriso mais falso que o ouro nas bijouterias que discretamente lhe brilhavam no pescoço e orelhas. Mas, que importava? Alegrando de estagiários à superintendentes, aquele sorriso era a benção mais igualitária ali distribuída.

Se bem que ela sorriu de verdade, e sorriu com gosto, só no dia em que o velho repentista, que andava por lá todo dia entre o couro do chapéu e das sandálias, cantou em verso o que todo mundo pensava em prosa:

Como me convinham,
as covinhas da Carminha!

domingo, 1 de agosto de 2010

Enquanto isso, no lustre do castelo...


Cada pergunta só leva a mais perguntas. Eu quis criar uma medida para a razão prática. Quis entender a ontologia do capitalismo e a metafísica dos sentimentos. Eu inquiri sobre a catarse e a melancolia e como o juiz questiona uma testemunha, interroguei a natureza, forçando-a a me entregar seus segredos mais escondidos.

Do amor à tragédia, de tudo eu perguntei. Mas as respostas só iluminavam o espaço em branco da minha mente, revelando novos vazios. E assim, após tristeza e dúvida e frustração, salvei-me de minha angústia. A Odisséia pelo conhecimento é um processo que não há de parar. E mais que angústia, sinto alegria. Claro, a outra opção é o tédio. Prefiro o ímpeto de um Ulisses inquieto.