terça-feira, 14 de setembro de 2010

O ventilador


Na cabeça, subitamente leve, as lembranças da viagem flutuaram como nuvens, encobrindo as estrelas que voaram em meio à visão escurecida. O barulho seco do punho desconhecido amaciando-lhe a carne da face ecoou por entre as mesas do bar repleto de atônitos e silenciosos espectadores. A despeito da inusitada quietude, reinante no fim da luta, ao contar a história anos depois lembraria claramente do badalar troante de um enorme sino de catedral em sua mente, ouvido bastante distintamente ao toque brutal do atacante.

Seus pés vacilaram dois passos. Impulsionado por um soco direto no estômago, caiu sobre a mesa às suas costas, o ar roubado instantaneamente dos pulmões. Com a mesma avidez com a qual procurara renovar o fôlego perdido, tateara a mesa de bilhar e, com as mão trêmulas, afinal alcançou um taco ali esquecido. Pouco depois estava acabada a luta. Vibrara a arma em mãos, cortando o ar com um zunido, fazendo-a explodir em pedaços nas têmporas do outro.

No teto, a luminária atingida pela fúria dos homens balançava alternando luz e penumbra pelas ruínas espalhadas do bar. Uma planície de cacos de vidro que pouco lembravam os copos e garrafas que há instantes jaziam sobre as mesas - agora também destruídas - cobria o piso. Ébrios lutadores gemiam pelo chão nocauteados em meio a cartas de baralho esvoaçantes. Então, isso é vida? - pensava, ainda sentindo o sangue ferver pelo êxtase da briga. Os braços doloridos, os dentes amolecidos e o olho que latejava lembravam-lhe do que deixara para trás. Lembravam-lhe da vida fácil na casa dos pais, da obrigação de ser gentil e simpático, da alegria pueril e ingênua dos amigos e de como aquilo tudo parecia tão distante no tempo e no espaço.

Deixou-se cair pesadamente sobre uma das poucas cadeiras próximas e incólumes. Pares de olhos assombrados o miravam. Pegou do chão uma garrafa que resistira aos embates e sorveu o pouco conteúdo que lhe restava. O alcóol pareceu queimar no encontro com o cortes recém-ganhos nos lábios e gengivas. Cuspiu de lado o whisky barato e, suspirando, voltou os olhos para o teto amarelado pela fumaça de cigarros. As lâminas do ventilador se sucediam em um giro entediado e indiferente. Riu-se da ironia de recordar os momentos mais doces quanto mais fortes eram as pancadas que recebia. Mais engraçado era a lembrança do amor perdido, que lhe vinha mais clara com o gosto ferroso que lhe invadia a boca ensanguentada.

2 comentários:

Rábula disse...

Essa parte da vida é bem mais legal do que a vida fácil na casa dos pais, com a alegria pueril e ingênua dos amigos.

Comentador Fiel disse...

Essa parte da vida talvez seja a única parte da vida, o resto é sonho.